terça-feira, 19 de junho de 2012

A Outra: um rei salafrário e o pecado original

Pintura retratando o rei salafrário.
  
    Sempre gosto de ressaltar que os filmes não tem obrigação alguma de agradar um profº de História ou os historiadores em geral. Afinal, essas obras são regidas pela arte e fazem parte de uma indústria onde a preocupação com o lucro é muito importante. Então, a análise de "A Outra" não é para apontar erros ou algo assim, e sim para procurar caminhos interessantes de se entender o filme e suas representações do episódio histórico do envolvimento do rei inglês Henrique VIII com as irmãs Bolena. Vamos começar pelo perfil do rei: logo de cara, percebe-se que possui o rei na barriga¹ e, apesar de seu casamento com Catarina de Aragão, princesa espanhola, ele age como o Lazaro Ramos na última novela das 20h. Assim, Henrique VIII usa e abusa das mulheres da corte inglesa. Sua principal insatisfação com a esposa é a falha em lhe conceder um herdeiro masculino que pudesse dar continuidade ao legado dos homens da família Tudor. Dessa forma, ele "afoga" as mágoas, na cama, com o mulheril inglês. Percebendo esse fato, o patriarca da família Bolena (família nobre, mas ainda buscando uma ascendência aos escalões mais próximos da monarquia) coloca em prática um plano muito simples: suas filhas devem agradar o monarca e conquistar sua influência absolutista em prol da família. O reinado de Henrique VIII é pleno na Inglaterra, tendo ele assumido a coroa de seu pai em 1509, mas a centralização dos Tudor acabaria por ganhar contornos mais concretos através da união da vontade carnal do rei com as necessidades político econômicas do reino.
    No filme, o plano dos Bolena prossegue com o encantamento do rei por Maria (Johansson); os dois tem um caso intenso e a prole ilegítima de Henrique VIII continua a aumentar, mas a ingenuidade de Maria não permite que ela alcance a influência sobre o rei, a qual havia sido planejada por seu pai. A irmã Ana (Portman) entra em ação nesse momento e, no melhor estilo femme fatale, Ana seduz o rei, tanto com promessas carnais como com a certeza de um herdeiro masculino para a coroa inglesa. O que ela pede em troca? Nada mais nada menos que a posição de rainha, o que inferia no divórcio do rei e Catarina de Aragão. "A Outra" trabalha exaustivamente a ideia de que Ana Bolena, apenas ela, teria manipulado Henrique VIII para conseguir dar forma aos seus planos. O filme acaba por aproximar o episódio histórico em questão da narrativa bíblica do pecado original, em que Eva convence Adão a provar do fruto proibido. Por girar em torno da relação do rei com as duas irmãs, é natural que o filme não desse atenção aos outros fatores que motivaram as ações de Henrique VIII, os quais o levaram a pedir o divórcio. Primeiro fator: era certo que Catarina não podia mais lhe dar herdeiros²; segundo: ao propor o divórcio para a Igreja Católica, estaria numa posição confortável frente a qualquer resposta, ou seja, sendo sim, o rei poderia exercer sua vontade pessoal e afirmar-se contra a monarquia espanhola da qual descendia Catarina de Aragão (a Espanha era concorrente direta dos ingleses na exploração colonial e na disputa por mercados na época de predominância das práticas mercantilistas na Europa), e sendo não, como foi o caso, o rei via-se livre em uma época de contestação reformista (vide Luteranismo e Calvinismo) para romper com o clero católico e dar início a sua própria Igreja. Dessa forma, surgia a Igreja Anglicana na Inglaterra. E mais: o rei tornava-se um monarca ainda mais poderoso, pois com o Ato de Supremacia (1534), agora ele, além de chefe de Estado, era também o encarregado da nova religião inglesa. As terras dos católicos foram tomadas em nome do rei e distribuídas entre aqueles que apoiavam as medidas de Henrique VIII e também vendidas para nobres e burgueses influentes do reino.
    As ações em curso afirmaram a centralização do poder dos Tudor, mas o caso entre Ana Bolena e o rei acabaria mal. Ela falhou em sua promessa de fornecer um herdeiro masculino e, rapidamente, caiu em desgraça com o rei. "A Outra", inclusive, dá margem às acusações que levaram à condenação e à morte de Ana e de seu irmão George, com o qual teria cometido incesto. O filme retrata uma possível ligação entre os irmãos, que servira de pretexto em soma a uma série de outras acusações de traição e bruxaria que o rei elencaria contra Ana, no intuito de casar novamente³. Dessa vez, ele casaria com a nobre Joana Seymour e, assim, finalmente iria adquirir sua prole masculina. Ana Bolena morre executada, assim como todos aqueles que contestaram as ações centralizadoras do rei. Foram muitos os que se opuseram ao rompimento com o catolicismo e ao excessivo poder político que ele ganhara com o Ato de Supremacia. Mas o destino dos opositores do rei fora a forca e a lâmina do machado. A prole de Ana, Elizabeth, desgraçada pelo destino da mãe, ainda viria a cumprir o destino de se tornar rainha e afirmar a religião Anglicana como a professão do Estado Absolutista inglês. É o que o filme demonstra, no seu final, e o relato histórico confirma.
¹ Não literalmente, pois a escolha do ator excluiu a fisionomia obesa do monarca e acabou por encontrar um par mais balanceado, no esbelto Eric Bana, para as irmãs Bolenas, interpretadas por Scarlett Johansson e Natalie Portman (dois pitélzinhos).
² A rainha Catarina ficou grávida pelo menos sete vezes (a última vez em 1518), mas só uma das crianças, a princesa Maria, sobreviveu à infância.
³ No total foram 6 os casamentos do rei salafrário.

As irmãs pitél em "A Outra".

  
   

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